A.N.C. - Batalhas e CombatesAssociação Nacional de Cruzeiros
BATALHAS E COMBATESda Marinha PortuguesaOrmuz - 27 de Setembro de 1507Ao raiar do dia 25 de Setembro do ano de 1507 começou a aproximar-se dofundeadouro principal da cidade de Ormuz uma estranha esquadra de seis naus,coberta de bandeiras e pendões que nunca haviam sido vistos por aqueles mares.Tratava-se de uma esquadra portuguesa que partira de Lisboa no fim do Inverno de1506, integrada na armada de Tristão da Cunha. O seu capitão-mor chamava-seAfonso de Albuquerque!Pelo meio-dia, os navios portugueses alcançaram o porto e fundearam, em ar dedesafio, junto das maiores naus que ali se encontravam, ao mesmo tempo quesalvavam à terra com toda a sua artilharia e as suas guarnições atroavam os arescom enorme algazarra.Ormuz era então a cidade mais importante do golfo Pérsico e chave do comérciomarítimo entre a Arábia, a Pérsia e a Índia. Os seus palácios e casas dehabitação em nada ficavam a dever aos da Europa. As suas ruas eram numerosas enelas proliferavam as lojas e os mercados, onde se podiam encontrar todos osprodutos do Oriente, desde os mais modestos, como as tâmaras e os limões, atéaos mais sumptuosos, como as pérolas de Barém, os cavalos e as tapeçarias daPérsia ou as sedas e as porcelanas da China.Pois fora precisamente esta cidade, rica e poderosa entre todas, que o rei D.Manuel de Portugal decidira subjugar, erguendo nela uma fortaleza, e era a issoque vinha a esquadra de Afonso de Albuquerque.Ormuz era nessa época um reino praticamente independente, embora vagamentevassalo do xá da Pérsia. Quem o governava não era o rei, que tinha apenas quinzeanos, mas sim um grão-vizir todo poderoso chamado Cogeatar.
Ormuz - 1507A chegada dos portugueses, com todo o seu aparato bélico, constituiu um choquemas não propriamente uma surpresa para este. Na verdade, durante as últimascinco semanas não tinham cessado de chegar a Ormuz notícias alarmantes, mesmoaterradoras, acerca de uma esquadra de frangues (cristãos) e de um terrívelcapitão que estava pondo a ferro e fogo a costa de Omã. Sabia-se que Calaiate,Curiate, Mascate, Soar e Corfação se haviam tornado vassalas do rei de Portugal;que aquelas que tinham resistido tinham sido tomadas à viva força e saqueadas;que aos prisioneiros de guerra tinham sido cortados os narizes e as orelhas.Dizia-se mesmo que os Portugueses comiam gente!Por tudo isto Cogeatar se sentia apreensivo e tratara de tomar as suasprecauções. Proibira a saída de qualquer das cerca de sessenta naus que estavamfundeadas em Ormuz e guarnecera-as com muita gente de armas, ao mesmo tempo quemandava chamar a sua armada, constituída por cerca de cem terradas (naviosparecidos com fustas) que se encontravam na costa da Pérsia.O que ele felizmente não sabia é que a esquadra de Afonso de Albuquerque, apesarda fama de que vinha precedida, era muito menos forte do que aparentava. Essaesquadra tinha passado um longo inverno na costa oriental da África. Integradana armada de Tristão da Cunha, colaborara nos assaltos a Hoja e Brava e naconquista de Socotorá. Tendo perdido muita gente por doença, restavam-lhe apenasquatrocentos e sessenta homens, metade dos quais doentes ou debilitados. Todosos navios estavam a precisar de grandes reparações, tanto no casco como noaparelho. Pior que tudo, havia grandes dissensões entre Albuquerque e os seuscapitães.Mas Afonso de Albuquerque era um actor consumado e um mestre na arte da guerrapsicológica. Apesar de ter os navios e as guarnições a cair aos bocados e de osseus capitães estarem à beira da rebelião, comportou-se como se dispusesse damaior e mais bem equipada armada do mundo e acabou por convencer disso os seusadversários, criando neles um complexo de inferioridade e de receio.Uma hora depois de ter fundeado, como não tivesse aparecido ninguém acumprimentos, Albuquerque mandou recado à maior nau que estava no porto, juntoda qual tinha largado ferro, para que o seu capitão viesse imediatamente abordo, caso contrário a meteria no fundo!Tratava-se de uma nau enorme, pertencente ao rei de Cambaia, que tinha a bordoperto de mil homens entre marinheiros e soldados. Pois o que aconteceu é que,perante o ultímatum de Afonso de Albuquerque, o seu capitão acobardou-se efoi-se apresentar imediatamente no navio daquele. Para o receber, Albuquerquemontou uma encenação grandiosa, aparecendo ricamente vestido, rodeado defidalgos e homens de armas cobertos com armaduras reluzentes e empunhando lançase espadas, no meio de bandeiras, colgaduras e almofadas de seda, à mistura compelouros, bestas e machados de abordagem.Aproveitando o efeito produzido por todo este aparato, explicou amavelmente aocapitão da nau de Cambaia que ele, capitão-mor daquela esquadra, tinha vindo pormandado de el-rei D. Manuel de Portugal apenas para tomar Ormuz sob a suaprotecção e autorizar todos os navios que navegavam por aqueles mares que ocontinuassem a fazer livremente desde que, evidentemente, o reconhecessem porsoberano e senhor. Pediu-lhe que levasse o recado a Cogeatar e que lhe dissessemais o seguinte: que, no caso de estar disposto a aceitar tão generosa oferta,se devia apresentar no dia seguinte naquela mesma nau para assentar pormenores;caso contrário, que teria muita pena, mas que se veria obrigado a queimar todasas naus que estavam no porto e a tomar Ormuz pela força das armas como haviafeito com as cidades da costa de Omã que lhe tinham resistido. E acrescentou, àlaia de confidência, que a si tanto lhe fazia, mas até que preferia que Cogeatarrecusasse porque ele próprio, assim como os fidalgos e soldados que ali via, jáestavam com saudades de um bom combate!Ao receber a mensagem de Albuquerque, Cogeatar pensou que ele devia ser doidopara se atrever a desafiá-lo, apenas com seis pequenas naus metidas no meio desessenta muito maiores e bem guarnecidas de gente de armas. Mas o capitão dagrande nau do rei de Cambaia aconselhou-o a que tivesse cautela. O capitãoportuguês o os fidalgos e soldados que estavam com ele pareciam gente muitoperigosa. Que se lembrasse do que tinha acontecido às cidades da costa de Omã!Cogeatar era um político hábil e prudente. Por isso não se precipitou. Foiconsumindo todo o dia 26 com respostas evasivas e dilatórias, procurando ganhartempo, para que a sua armada de terradas pudesse chegar a Ormuz, o que veio aacontecer nessa mesma noite.Notando que a coberto da escuridão as naus que estavam mais perto dos naviosportugueses mudavam de posição e ouvindo o rumor provocado pelo intensomovimento dos batéis que traziam reforços de armas e soldados, Afonso deAlbuquerque compreendeu que Cogeatar não se assustara suficientemente e decidiracombater.
Distribuição das forças(esquema sem escala)Ao amanhecer do dia 27, os portugueses puderam constatar que as naus inimigastinham ido fundear mais junto à praia, muito próximas umas das outras, tendo amaior parte delas os costados protegidos com arrombadas feitas com sacos dealgodão. Em algumas, já as guarnições estavam tocando trombetas, fazendo grandealarido e agitando as armas. Detrás das naus, saiam em grupos compactos asterradas de Ormuz que vinham tomar posição pelo outro bordo dos nossos navios,de modo a cercá-los completamente. Ao longo da praia viam-se muitos esquadrõesformados e alguns baluartes com artilharia.Afonso de Albuquerque não perdeu tempo. Como o vento era muito fraco, ordenouaos batéis que tomassem as suas naus a reboque e foi fundear a curta distânciada grande nau do rei de Cambaia e das outras naus que lhe pareceu serem asprincipais da armada inimiga. E, sem mais detença, abriu fogo!O inimigo respondeude imediato, travando-se um furioso duelo de artilharia,acompanhado por contínuas descargas das espingardas e arremessos de flechas,tudo isso no meio de um barulho ensurdecedor e de uma densa fumarada que ovento, por ser muito fraco, não conseguia dissipar.Aproveitando o empenhamento dos portugueses no combate com as naus e as nuvensde fumo que, em parte, cobriam os seus movimentos, as terradas de Ormuz atacaramvárias vezes pelo bordo contrário. Começaram então as nossas naus a experimentaralgumas dificuldades, pois tinham pouca gente e viam-se obrigadas a sustentar ocombate de artilharia com as naus adversas por um bordo e, ao mesmo tempo,repelir os ataques das terradas pelo outro. Porém, como estas, devido ao seunúmero, eram forçadas a avançar em massas compactas, ofereciam um alvo ideal aosnossos bombardeiros, que não perdiam um tiro. Depois de algumas delas terem sidoafundadas e outras terem sofrido avarias graves e terem tido muitos mortos eferidos, desistiram dos seus ataques e regressaram à praia.Andava ali Cogeatar, num batel, providenciando o envio de reforços para as nausque estavam sofrendo mais baixas. Ao ver aparecer as terradas, recompletou assuas guarnições e tornou-as a mandar ao ataque das naus portuguesas. Elas assimo fizeram mas, de novo, sem qualquer êxito. Nos dois ataques perderam asterradas de Ormuz quinze a vinte unidades afundadas e muitas mais gravementeavariadas.Entretanto, prosseguia o combate de artilharia com nítida vantagem para osportugueses, cujos canhões de bronze eram muito mais potentes que os canhões deferro dos adversários. Das naus que estavam sendo alvejadas pelos nossos navios,duas já tinham sido afundadas e as restantes, tinham o convés juncado de mortose feridos. Vendo a sorte que as naus mais poderosas tinham tido, muitas outrascomeçaram a aproximar-se ainda mais da praia para onde as suas guarnições fugiama nado antes que as nossas naus se aproximassem delas.Albuquerque tinha dado ordens rigorosas aos seus capitães para que ninguém selançasse à abordagem antes de ele pr6prio o fazer, pois que, dada asuperioridade numérica do inimigo, pensava ser mais prudente desgastá-lo edesmoralizá-lo primeiro com o fogo da artilharia. Porém, quando verificou que amaioria das naus inimigas já não respondia ao fogo das nossas e que as suasguarnições começavam a debandar, deu o sinal de abordagem, pelo qual os fidalgosesperavam ansiosamente, mandando o batel da sua nau aferrar a nau do rei deCambaia.A tomada desta nau não foi fácil. Por um lado, a altura do seu costado tornavamuito difícil a escalada dos portugueses carregados de armas; por outro, aindahavia nela muitos soldados aguerridos que durante o combate de artilharia tinhampermanecido abrigados nos pavimentos inferiores e que agora surgiam no convésdispostos a repelir os nossos. Travou-se então um violento combate à armabranca, em que, mais uma vez, o maior valor, a maior experiência e as armadurase capacetes dos portugueses acabaram por levar a melhor. Logo que os capitãesdos persas foram mortos, os soldados lançaram-se à água.Uma outra grande nau, pertencente à cidade de Fartaque, ofereceu denodadaresistência ao assalto dos nossos batéis, mas acabou por ser igualmentedominada. Cerca de vinte naus foram capturadas praticamente sem oposição.Desbaratadas as naus que se encontravam mais longe da praia, os batéis começarama perseguir às lançadas os numerosos soldados e marinheiros inimigos que a nadotentavam chegar a terra. Foi uma verdadeira carnificina, em que foram mortosmais de um milhar de homens, perante o olhar horrorizado dos habitantes dacidade que seguiam com ansiedade todas as peripécias da batalha.Por sobre as águas tintas de sangue dirigiram-se então os batéis portuguesespara as naus que tinham ido fundear junto da praia e lançaram-lhes fogo, aomesmo tempo que lhes cortavam as amarras. Arrastadas pela brisa, cerca de trintanaus, ardendo como archotes, foram descaindo lentamente para a costa da Pérsia,onde se acabaram de consumir.Afonso de Albuquerque, que se mudara para um batel, andava de um lado para ooutro, procurando coordenar as acções dos seus homens. Ao passar perto da praia,Cogeatar mandou atirar-lhe com um canhão de um dos baluartes. Mas o tiro falhou.Respondeu-lhe imediatamente o «berço» do batel, que acertou em cheio no palanquedonde o rei de Ormuz estava assistindo ao combate. Aterrorizado, o rei fugiupara a cidade. Cogeatar, vendo que os nossos batéis punham as proas em terra,receou que os portugueses fossem acometer a cidade e deu ordem às tropas queestavam na praia para se recolherem a ela. Isso permitiu aos nossos desembarcarà vontade e tomar de assalto uma pequena povoação que havia no extremo daribeira onde alguns soldados de Ormuz se tinham entricheirado numa mesquita.Seguidamente, começaram a queimar as naus, perto de uma centena, que estavam emreparação ou em construção na ribeira.Se essas naus fossem queimadas, seria a ruína completa da cidade de Ormuz, cujaprosperidade se devia exclusivamente ao comércio marítimo. Por isso Cogeatarapressou-se a pedir a paz, enviando um «mouro» com uma bandeira branca a Afonsode Albuquerque. Em altos gritos, increpava aquele os soldados portugueses paraque cessassem de queimar as naus... que pertenciam ao rei de Portugal!Albuquerque aceitou a rendição a troco do pagamento de um pesado tributo anual eda autorização para construir uma grande fortaleza na ponta norte da ilha,destinada a assegurar em definitivo o domínio do Golfo Pérsico e regiõescircundantes pelos Portugueses.Na batalha naval de Ormuz perderam os Ormuzinos cerca de oitenta naus, entre asque foram afundadas, queimadas no mar ou em terra, ou capturadas bem como cercade trinta terradas afundadas ou capturadas e cerca de três mil mortos além demuitos mais feridos. Do lado português houve apenas onze feridos, entre os quaisalguns graves.Terminada a batalha os soldados portugueses puderam verificar que muitos dosinimigos mortos tinham flechas espetadas no corpo, arma que os portugueses nãousavam. Supomos que terão sido flechas disparadas pelas terradas que, passandopor cima das naus portuguesas, terão ido atingir as guarnições das naus de Ormuzque estavam do lado contrário. A versão que correu entre os nossos para explicaro facto foi que Deus tinha enviado os anjos, armados com arcos e flechas, paracombater a seu lado!Poucos dias depois, Albuquerque deu início à construção da fortaleza. Mas,algumas semanas mais tarde, teve de desistir e abandonar Ormuz, por três dosseus capitães terem desertado para a Índia com as suas naus. Tentou no anoseguinte (1508) recuperar a cidade, dispondo apenas de quatro navios, mas tambémnão o conseguiu. Parecia então que a grande vitória que alcançara em 27 deSetembro de 1507 não servira para nada.Mas não foi isso que aconteceu. A fama que nela alcançara perdurou. E, quando noOutono de 1515 ali voltou, aureolado pelas conquistas de Goa e de Malaca, Ormuzentregou-se sem a menor resistência, declarando que nunca deixara de ser vassalado rei de Portugal!
Saturnino Monteiroem «Batalhas e Combates da Marinha Portuguesa» (Vol.I)Bibliografia:Anónimo, Crónica do Descobrimento e Primeiras Conquistas da Índia pelosPortugueses, Imprensa Nacional, Lisboa, 1986, p. 311Castanheda, Fernão Lopes de, História do Descobrimento e Conquista da Índiapelos Portugueses, Lello & Irmão, Porto, 1979, Vol. I, p. 343Barros, João de, Décadas, Livraria Sam Carlos, Lisboa, 1973, 3º Vol. p. 122Góis, Damião de, Crónica do Felicíssimo Rei D. Manuel, Imprensa da Universidade,Coimbra, 1926, Parte II, p. 99Sanceau, Elaine, Indies Adventures, Blackie & Son, London and Glasgow, 1936,p.41Correia, Gaspar, Lendas da Índia, Imprensa da Universidade, Coimbra, 1922, TomoI, p. 814
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Última actualização: 23 de Maio de 2001Copyright © A.N.C.- Associação Nacional de Cruzeiros / Livraria Sá da CostaEditora / Cmdte. Saturnino Monteiro
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